Em conversa com a FIFA, que pode ser lida abaixo, o treinador Pedro Gonçalves abriu o coração sobre as dificuldades que encontrou neste percurso promissor e a alegria que os jogadores proporcionaram a um povo que precisava muito sonhar.
FIFA: Angola nem sequer havia se classificado para a CAN de 2021, e agora fez história. Como ocorreu essa evolução?
Pedro Gonçalves: Foi um marco importante para catalisar o futebol angolano. Estou muito satisfeito. Ultrapassamos os objetivos. Caímos nas quartas, mas caímos em pé. Enfrentamos a poderosíssima Nigéria, com atletas que jogam em alto nível nas ligas de Inglaterra, Itália, França, Portugal. Um jogo extremamente exigente, mas nos orgulha e nos motiva o potencial que a Angola tem.
A idade média da seleção é 26 anos. Ou seja, este bom resultado não foi fruto de uma nova geração milagrosa. Foi um trabalho de mudança de mentalidade?
Infelizmente, a falta de recursos exige que sejamos criativos, mas nunca foi motivo para cruzar os braços e deixar de trabalhar. Procurei estabelecer equilíbrio. Peguei a seleção principal em setembro de 2019 e tive jogos nas eliminatórias para a Copa do Mundo da FIFA Qatar 2022™. A direção disse: “temos de renovar a seleção”. Pensei: bom, temos de acabar com isto de fazer renovações, temos de criar um modelo autorrenovável para que isso ocorra com fluidez, que não tenhamos de terminar uma geração agora e iniciar outra. Por isso, peguei jogadores que pudessem ainda fazer ciclos, como o Fredy, que é o capitão e o mais velho, com 33 anos. Temos muitos na maturidade da carreira e vários jovens. Procuro implementar esta fluidez, sem sobressaltos.
Por que o povo angolano abraçou tanto este elenco?
O povo nos deu uma onda de apoio como há muito tempo não se via em Angola. É uma motivação e uma responsabilidade adicional. Nós tivemos três vitórias nesta edição, e nas oito anteriores a Angola nunca tinha vencido dois jogos da mesma edição. E só tinha vencido quatro jogos no total! O efeito surpresa foi bom. Quando entramos na CAN, dentre as 24 seleções, éramos a terceira pior colocada do ranking mundial. Foi este o nosso ponto de partida, e chegamos às quartas de final entre os oito melhores da África. Portanto, o futuro promete caso haja o devido investimento para a dimensão que queremos propor.
Você se emociona com o carinho de um povo tão batalhador?
Assim como grande parte da África, o povo angolano vive genuinamente. Com pouco se vive, mas com muita alegria. É gratificante contribuir para a felicidade do cidadão comum, que enfrenta as dores do dia a dia e sente alegria tremenda com vitórias dos Palancas Negras. Sou português, mas agora uma parte minha será sempre angolana porque as vivências são muito marcantes. Angola será parte de mim para o resto da minha vida. Quem tem um cargo como o meu precisa contribuir para a harmonização da comunidade. No mundo em que vivemos hoje, uma aldeia global, já não faz sentido determinar rivalidades sociais e estigmas. Mesmo sendo português, sinto-me absolutamente acarinhado por todos.
O futebol dessa seleção de Angola tem um caráter alegre muitas vezes associado ao Brasil, mas na verdade tem tudo a ver com seleções de língua portuguesa. É essa a proposta?
O jogador angolano é extrovertido, fantasista, criativo. Tem algumas lacunas do ponto de vista físico e fisiológico porque muitas vezes a infância e a juventude foram marcadas por dificuldades. Mas esta nova geração já superou um pouco. É produto do trabalho de acompanhamento social, com alimentação, educação e escola. Somos uma equipe que joga positivo, com fair play e pensa no futebol. Nunca houve um jogo com espírito de violência. Ganhando ou perdendo, é uma marca a postura dos nossos jogadores e a alegria com que disputam o jogo.
Como cidadão português, você certamente vibrou muito com Portugal na Copa do Mundo da FIFA 2006. Aquele foi o único Mundial disputado por Angola até hoje. Dos três times do grupo, a seleção portuguesa foi a única a vencer a angolana. Você tem lembrança daquele confronto?
Eu assisti ao jogo e recordo-me bem. Portugal teve uma excelente geração muito bem orientada pelo brasileiro Felipão, que ficou no coração de todos os portugueses. Em Portugal, nós não sentimos que o brasileiro seja estrangeiro; é quase como um familiar distante. Ele foi exemplar na forma como uniu os portugueses em torno da seleção e de uma geração muito forte. Aquela Copa do Mundo foi a única de Angola no futebol adulto. Entre Portugal e Angola, muitas famílias estavam divididas, umas por Portugal e outras por Angola. Foi um jogo extremamente intenso, recordo-me bem. Portugal ganhou por um gol, mas foi um jogo em que Angola deu muito trabalho e teve boa campanha como estreante.
E você sonha em levar Angola à segunda Copa de sua história? Ainda mais agora, com o novo formato de 48 seleções.
Espero que possamos dar a volta por cima para Angola. Todos sentem que há condições de chegar à Copa do Mundo. Neste momento das eliminatórias, nós somos a única seleção do grupo que fez dois jogos fora de casa – na África, isto pesa muito. Não será fácil, mas será uma luta em que Angola vai até o fim, vai lutar e quer estar na Copa do Mundo.
Haverá um longo intervalo até os próximos jogos das eliminatórias. Como manter esta energia até junho?
Estamos motivados pela campanha, mas há ações que precisamos tomar se quisermos chegar a um patamar mais alto. Podemos discursar que queremos ir ao Mundial, mas que iniciativas vamos realizar? Se quisermos dar mais um passo, Angola obrigatoriamente tem de habilitar sua seleção. No fundo, sinto que agora todos nós acreditamos. Jogadores, comissão técnica, federação, povo angolano. Acreditar que temos capacidade de enfrentar os melhores e nos superpormos. Não se trata de excesso de confiança, mas determinação, vontade. Angola pode ter coisas sérias para mostrar ao mundo.
Já imaginou como seria se vários países de língua portuguesa se classificassem para o Mundial?
Seria fantástico. Cabo Verde tem sido exemplar para Angola e tem se mantido perto do top do futebol africano já há mais de uma década. Posso também frisar a Guiné-Bissau, que tem muito potencial, e o Moçambique, com uma geração muito forte. Para São Tomé e Príncipe será sempre mais difícil chegar longe pela pequena dimensão do país. E Timor-Leste tem um percurso de crescimento para se propor para outros patamares. Eu quero acreditar que não serão só Portugal e Brasil, que alguma seleção africana a mais possa estar na Copa do Mundo. E que seja Angola! Portugal e Brasil são colossos. O Brasil estará lá com certeza. Não só pela língua, mas o futebol brasileiro é muito apreciado em Angola. Quem sabe não pode haver um grupo entre Brasil, Portugal e Angola? Seria o cenário dos sonhos.
Para fechar, vamos falar sobre seus líderes do elenco: o goleador Gelson Dala (vencedor da Chuteira de Prata da CAN), o capitão Fredy e o experiente Mabululu.
São os jogadores de referência há mais tempo na seleção, mas nunca tinham conseguido evidenciar isso em uma grande competição. O Gelson é um menino bonito do futebol angolano. Os três precisavam desta afirmação na carreira: uma grande campanha pela seleção principal. Na África, às vezes é difícil seguir quando não há recursos. É preciso ter perfil para isto. É preciso ser forte para suportar tudo. Portanto, dou os parabéns a toda a equipe.